para não esquecer

"Antes que venham ventos e te levem do peito o amor, este tão belo amor que deu grandeza e graça à tua vida, faze dele, agora, enquanto é tempo, uma cidade eterna e nela habita.

Uma cidade, sim. Edificada nas nuvens, não no chão por onde vais, e alicerçada, fundo, nos teus dias, de jeito assim que dentro dela caiba o mundo inteiro: as árvores, as crianças, o mar e o sol, a noite e os passarinhos, e sobretudo caibas tu, inteiro: o que te suja, o que te transfigura, teus pecados mortais, tuas bravuras, tuas enormes qualidades tudo afinal o que te faz viver e mais o tudo que, vivendo, fazes.

Uma cidade onde possas cantar quando o teu peito parecer, a ti mesmo, ermo de cânticos; onde possas brincar sempre que as praças que percorrias, dono de inocências, já se mostrarem murchas, de gangorras recobertas de musgo, ou quando as relvas da vida, outrora suaves a teus pés, brandas e verdes já não se vergarem à brisa das manhãs.

Uma cidade onde possa achar rútila e doce, a aurora que na treva dissipaste; onde possas andar como uma criança indiferente a rumos: os caminhos, gêmeos todos ali, te levarão a uma aventura só, macia, mansa e hás de ser sempre um homem caminhando ao encontro do que buscas.

Dono do amor, és servo. Pois é dele que o teu destino flui, doce de mando a menos que este amor, conquanto grande, seja incompleto. Falte-lhe talvez um espaço, em teu chão, para cravar os fundos alicerces da cidade.

Ai de um amor assim, vergado ao vínculo de tão amargo fado: o de albatroz nascido para inaugurar caminhos no campo azul do céu e que, entretanto, no momento de alçar-se para a viagem, descobre, com terror, que não tem asas. Ai de um pássaro assim, tão malfadado a dissipar no campo exíguo e escuro o que trouxe no bico e na alma para dar ao céu.

Ainda é tempo. Faze tua cidade eterna, e nela habita: antes que venham ventos, e te levem do peito o amor, este tão belo amor, que dá grandeza e graça à tua vida."

Thiago de Melo