Última e Primeira

Diz-se na estória da Cinderela que a carruagem vira abóbora à meia noite... O tempo de acreditar em contos de fadas acabou e por mais que eu tente acreditar que não há motivos para as coisas serem entrelaçadas do jeito que são, parece-me que a física quântica ri enquanto eu finjo não ver que tudo descarregado aqui me leva à mesma direção.
É por isso que eu decidi, como tantas outras vezes, mudar de rumo... novamente. Desta vez sem deixar nem sapatinho de cristal nem rastros para trás. Vou-me. E não vou na tentativa de abandonar-te porque eu sei, e você, embora ria e finja que a física não existe, também sabe que não há como abandonar-se.
Vou apenas para poder dançar longe de tantos olhares. Por tantos caminhos tanto quantas vontades poderei seguir. Sem varinha de condão, sem antecipar futuros, sem pensamentos e sem intenção. Vou respirar do outro lado livre da idéia de que há sempre um único destino para todas as palavras. Só levo comigo tudo que na minha alma cabe e que na minha mala não pese. Enquanto do lado de cá logo de mim tudo se esquece.

Adeus. Vou escrever-me em outro lugar.
E assim foi feito.

Vou deixar a rua me levar
Ver a cidade se acender
A lua vai banhar esse lugar
Eu vou lembrar você
Ana Carolina

Reprise

Despedida

Despedidas são assim,
com cara de chuva que inunda,
com cara de noite que tira luz,
com cara de perda do que nunca se teve.
Vêm, apenas vêm...
Tiram de nós algo de brilho,
algo de bom...algo de nosso...algo de alguém...
apenas vêm...

Despedidas
Dos que vão por ciclo natural da vida...
dos que vão por opção, dos que têm que ir...
dos que a vida distanciam,
pela hora errada, pela situação errada..
na vontade suprimida em cada um...
mas, se tem que ter despedidas,
tchau, enfim.
Jane Lagares
15/09/2006

Tempo: um outro. Nome: um mesmo. Lugar: incerto.
Eu teimo em andar em círculos

Vão da memória

Eu sei que não vou lembrar o jeito certo de sentir. Talvez eu nem consiga esquecer. Tanto tempo já passou que a impressão que tenho é que ainda consigo ver os mesmos passos na rua reta. Um a um. Às vezes eu fitava o céu, tentando descobrir Deus sorrindo pra mim. Às vezes eram os prédios que tinham a minha atenção. Todos alinhados, testemunhas da minha necessidade estranha de estar perto de ti.
Seguravas-me pelos braços, pelas mãos, pela cintura e eu tentava emparelhar meus passos aos teus. Um a um. Ali perto de ti, naquele mundo tão diferente, me sentia em casa. Fui descobrindo que aquele dia cinza iria refletir em cores um dia importante da minha vida. De seqüencias pretas e brancas eu encontrei um coração no ladrilho do chão, à frente uma borboleta, mais à frente uma letra perdida e outra adiante... parecia que eu ia re-construir o mundo com ladrilhos.Era o mundo novo, colorido na calçada.
O riso feliz de criança, que descobre uma coisa, sem perceber que todo mundo já sabia, apareceu. Talvez só eu saiba a intensidade de todos aqueles passos. Todos eles. Cada um. Um a um. Talvez só eu entenda também que naquele dia, um coração se achou e um outro se perdeu. O meu, é igual àquele da rua reta, daquele dia, um coração de ladrilho dobrado no papel... Talvez jamais se esqueça...


Nas ruas de outono, os meus passos vão ficar
Ana Carolina

Desassossego

Eu descobri. Descobri que quero preencher com palavras todos os cantos que você deixou em branco quando partiu. Sei que elas não serão as mais doces, nem mesmo poderão me acalentar. Não serão digeríveis ou tangíveis. Elas serão sim aquelas marcadas pelo vazio, pela melancolia trazida nos olhos de quem não vê o finito das coisas. Aquelas descoradas e gastas de si mesmo, jamais entendidas.
Eu me cerco então em páginas, capítulos e livros de mim. Todos empilhados à altura da mão estendida e dos sentidos famintos. Um mundo ao redor das estórias pisadas e repisadas. E a cada linha, espremida com tamanha força, cada letra do seu nome irá saltar. E assim, da reescrita de todas as palavras haverá uma nova ordem, em cada canto, um novo conto em branco se descobrirá.


O coração se pudesse pensar, pararia
Fernando Pessoa