quem conta um conto...

(Epifania: coisa simples, pessoa ordinária, situação comum. Intuição)

Era sábado, dia de sair de casa depois de tantos dias concentrada entre papéis, contas à pagar, compromissos conturbados e telefonemas. Ela não queria ser tão sincera dizendo que não estava com vontade alguma de enveredar pela noite mas tinha que ir, era um compromisso de amigas.
Maquiagem, salto alto e perfume num lugar com gente bonita, música e bebida é sem dúvida uma combinação explosiva. Arrumou-se sem pensar na roupa fatal e saiu.
Espanta-se cada vez mais ao notar que as pessoas estão sempre tentando ser o que não são. Unem-se, sorriem, bebem, dizem coisas um tanto sem sentido, enganam-se.
Caminhou até o bar, pegou uma bebida, o calor fazia aquilo parecer uma poção mágica. Observava o vai e vem das garotas semi-nuas e dos garotos sarados e seus sorrisos perfeitos enquanto dançava embalada. Volta e meia distraía-se ao ver os corpos desengonçados sacolejando no ritmo "puts-puts".
Um garoto aproximou-se dizendo ser um anjo, ela fez de conta que não ouviu. Aproveitou a fumaça para acreditar que era capaz de desaparecer. Desapareceu.
Apareceu do outro lado, dançou junto das meninas da sua turma e pensava entre os lances de luzes roxas, verdes e laranjas como somos tão diferentes uns dos outros. Que alívio.
As pessoas já estavam se enroscando umas com as outras e depois com outras e outras. Alguém chamou sua atenção, passou por ela e sorriu, ela sorriu de volta mas foi só. Perderam-se.
O calor incomodava, era hora de arrumar outra bebida. No caminho até o bar, passeando entre o pouco de espaço que restava entre as pessoas, alguém segurou sua mão. Olhou, num misto de sentimentos, luzes, bebida, fumaça e surpresa, recebeu um sorriso. Congelou.
Ele não a soltou. Seguiu-a até o bar. Hipnotizada por um sorriso de covinhas, a conversa só tornava-se menos impossível de se ouvir quando chegavam bem próximos um do outro.
Ela era irônica à qualquer tentativa de aproximação mais investida dele. Conversavam sobre coisas bastante diferentes, tinham gostos diferentes, brincavam e riam da bebedeira dos que tentavam manter-se equilibrados. Concordaram que a gravidade era o bem mais valioso naquela hora.
Ele pediu-lhe um beijo, ela riu dele e imediatamente negou. Questionada sobre o motivo não conseguiu convencê-lo mas ele conteve-se. Combinaram que uma sequencia de outros fatos precisava acontecer antes que o próprio beijo acontecesse.
Entre uma ou outra pergunta por várias vezes quase se beijaram, riam e disfarçavam como se o fato não tivesse sido um tanto intencional. Ele ria do jeito dela, ela ria do jeito dele. Divertiam-se.
Tudo aconteceu como planejado entre a hora que se passou. Beijaram-se. Descobriram-se.
Sem muitas explicações, nem pedidas nem deixadas, sem deixar rastro ele se foi. Não trocaram uma palavra.
Ela olhou para o barman e implorou em silêncio que ele compreendesse que ela queria. Ela caminhou pelo local pequeno como se viajasse pelo mundo todo, conhecendo todos as suas trajetórias truncadas sem encontrar-se ou seguir caminho algum.
Só pensava no tamanho do vazio que um beijo pode arrastar para dentro e para fora das pessoas. O sol acabara de nascer no horizonte e nunca mais se ouviu falar dela.


a ilusão amortece e preenche, aí esvazia tudo ao redor para então iludir novamente

Um comentário:

Anônimo disse...

Até encontrar a Verdade.